Traição a Magnitsky
“O ministro Alexandre de Moraes não é um violador grave de direitos humanos, não é acusado de sê-lo, tampouco é um grande cleptocrata que ganhou bilhões em corrupção.” A frase é de Sir William Browder, 61 anos, americano naturalizado inglês, financista e, a um tempo entre finais de anos 1990 e princípios deste século, o maior investidor estrangeiro na Rússia. Browder é, também, o pai da Lei Magnitsky, aquela utilizada pelo governo de Donald Trump contra o relator do processo de tentativa de golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal. “Essas são as únicas categorias pelas quais alguém deve ser sancionado pela lei.”
Em entrevista ao Meio, disponível na íntegra, em inglês, no nosso streaming, Browder se mostrou simultaneamente indignado e aliviado. “Eu temia que eles quisessem acabar com a Lei Magnitsky”, diz sobre o atual governo americano. “Este é claramente um abuso da lei mas, ironicamente, agora eles também estão comprometidos com ela.”
No princípio do governo de Vladimir Putin, o Kremlin começou a partir contra os negócios em que o fundo de Browder havia investido. Era um leque de companhias focadas em energia como Gazprom, Surgutneftegaz, Unified Energy Systems e Sidanco. Foram pressionadas de toda forma, vieram processos estapafúrdios até, no fim, serem encampadas. Para questionar nas cortes o que era o início dos muitos abusos do governo Putin, ele constituiu um jovem advogado tributarista chamado Sergei Magnitsky. Quando descobriu uma fraude fiscal de US$ 230 milhões cometida pelo governo, Magnitsky foi preso, torturado por 358 dias e, ao fim, morto. Tinha 37 anos.
Perante o choque, Browder fez de sua missão de vida constituir um aparato legal que permitisse punir os responsáveis por crimes de alto grau de violência e corrupção como este. A Lei Magnitsky não é apenas americana — há legislações equivalentes a ela no Canadá, no Reino Unido, na União Europeia e na Austrália. A praxe é de que quando um dos governos decide após muita análise punir alguém com ela, que o ato ocorra em concerto com os outros. Esta rede faz com que os grandes corruptos e violadores de direitos humanos tenham muita dificuldade de transitar com seu dinheiro pelo mundo.
Para o criador da Lei Magnitsky, o uso da lei contra Moraes é tão absurdo que, se o governo brasileiro entrar na Justiça americana, ganha já desde a primeira instância. “Os tribunais são independentes; e a lei, escrita de forma muito clara”, ele diz. “As instituições americanas são muito fortes, mas vamos sofrer um tanto porque este presidente ainda tem mais três anos e meio de mandato.”
Sir William, como surgiu a Lei Magnitsky? O que aconteceu?
Fui o maior investidor estrangeiro na Rússia por cerca de uma década, do fim dos anos 1990 ao início dos anos 2000. Comecei a descobrir corrupção nas empresas em que investia e denunciei esses esquemas. Como retaliação, fui expulso do país. Meus escritórios foram invadidos e a polícia confiscou diversos documentos. Pedi a um jovem advogado, Sergei Magnitsky, que investigasse por que estavam apreendendo esses papéis. Ele descobriu que os documentos vinham sendo usados numa fraude fiscal complexa em que autoridades corruptas e membros de organizações criminosas se uniram para desviar e roubar US$ 230 milhões em impostos que minha empresa havia pagado ao governo russo. Sergei expôs o crime, testemunhou contra os envolvidos e, em seguida, foi preso, torturado por 358 dias para tentar fazê-lo retirar seu depoimento e, depois, assassinado sob custódia da polícia russa aos 37 anos. Isso foi em 16 de novembro de 2009. Desde então, abandonei a vida empresarial para dedicar todo o meu tempo, energia e recursos a buscar justiça contra os responsáveis. Acabei chegando a uma ideia: a Rússia é um país sem justiça, totalmente dominado pelo crime, mas talvez esses criminosos se sentissem pior se seus bens no Ocidente fossem congelados, e eles não pudessem viajar para lá. Levei essa ideia a Washington, depois ao Reino Unido, ao Canadá, à União Europeia e a outros lugares, perguntando: “Podemos congelar os ativos e negar vistos a esses violadores de direitos humanos e cleptocratas russos?”. Essa proposta se tornou a Lei Magnitsky. A lei foi aprovada nos Estados Unidos em 2012, no Canadá em 2017, no Reino Unido em 2018, na UE em 2020 e na Austrália em 2021. Hoje, ela existe em 36 países e é a ferramenta mais poderosa para responsabilizar abusadores de direitos humanos, torturadores, assassinos e grandes cleptocratas que antes eram intocáveis.
Normalmente, quando alguém entra na lista da Lei Magnitsky nos EUA, essa decisão é espelhada no Canadá, no Reino Unido, na UE e na Austrália, certo?
Certo. Não é 100 %, mas, em geral, se uma pessoa é considerada violadora de direitos humanos num país, isso é reconhecido em outros. É muito difícil colocar alguém na lista Magnitsky. É preciso ter feito algo realmente horrível. Por exemplo, os responsáveis pelos campos de concentração dos uigures em Xinjiang, na China — cinco ou seis generais envolvidos em genocídio —, estão na lista. Autoridades nicaraguenses que mandaram atirar em manifestantes pacíficos também. É preciso ser alguém bem perverso para entrar ali.
Pois o governo americano atual optou por usar a lei politicamente e incluiu um ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Não temos uma democracia perfeita no Brasil, mas há Estado de Direito: um ex-presidente está sendo julgado por tentar um golpe por um colegiado, e esse ministro, que conduz o julgamento, agora aparece na lista. O que isso significa?
Até onde sei, o juiz Alexandre de Moraes não é um grande violador de direitos humanos nem um cleptocrata que ganhou bilhões com corrupção — as duas categorias que justificam sanções pela Lei Magnitsky. Apontar alguém por razões políticas é um abuso da lei. Além disso, se um governo usa essa lei para ajustar contas políticas em outro país, essa decisão degrada o objetivo nobre da legislação. Não é um bom dia para a Lei Magnitsky.
A lei existe para incentivar comportamentos corretos e fortalecer democracias. Quando ela é usada assim…
A Lei Magnitsky foi pensada para países sem Estado de Direito — lugares onde assassinos e torturadores são intocáveis e vítimas não têm recurso. São esses indivíduos que devem ser sancionados. Veja o exemplo da África do Sul sob Jacob Zuma, um governo totalmente corrupto. E muitos sujeitos ajudaram Zuma a operar sua corrupção. Os irmãos Gupta, da Índia, supostamente roubaram dezenas de bilhões do Estado, e o país não conseguia puni-los. Os EUA e outros usaram a Lei Magnitsky contra eles. Esse é o uso correto da lei.
Quais são as consequências de usar esse poder contra democracias consolidadas que combatem corrupção e autoritarismo? Se os EUA impõem sua própria visão a outras democracias, o que acontece?
A questão vai além da Lei Magnitsky. O atual governo está abusando de outras leis: tarifas via IEEPA (International Emergency Economic Powers Act), o chamado “Alien Invasion Act” e mais. Isso faz muita gente estremecer. Democracias costumam cooperar. A Lei Magnitsky existe em vários blocos democráticos justamente para isso. Mas hoje há um grande país que se retirou de acordos como o Acordo de Paris e de instâncias da ONU. Os EUA, antes âncora do Estado de Direito e da democracia, se afastaram.
Há quem acuse grandes democracias de hipocrisia. Usar a Lei Magnitsky desse modo parece confirmar isso, não?
O mundo é vasto, com muitas opiniões. Democracia, Estado de Direito, bem e mal não desapareceram. Muitos tentam fazer o certo; alguns não. Também se pode criticar o Brasil por se alinhar a Vladimir Putin na guerra da Ucrânia. É complicado.
Trump sancionou o juiz porque seu amigo Bolsonaro está na berlinda, assim como ele esteve. Ele vai longe por isso. O mundo — e a Lei Magnitsky — seguirão. Eu temia que Trump desmontasse a lei, mas, ironicamente, ao abusar dela, ele também se compromete com ela. Este é um abuso específico. Se Moraes recorrer à Justiça dos EUA para contestar a sanção, provavelmente vencerá.
Esse caminho jurídico é viável?
Com certeza. Os tribunais nos EUA são independentes do Executivo, e a lei é clara: ele não se enquadra nas categorias. Se fosse ele, entraria com revisão judicial imediatamente.
Democracias no mundo se sentem atacadas pelo atual governo dos Estados Unidos. Trump é um erro passageiro corrigível no próximo mandato ou estamos diante de uma crise prolongada?
Não acredito que o movimento Maga (Make America Great Again) represente a maioria dos americanos. É uma minoria barulhenta. Muitos se sentem sem opção. Mas um grande grupo quer um governo normal — sem “britadeiras” de notícias todo dia. Confio na força das instituições americanas. Vi na Rússia o que é um governo tomado por criminosos. As instituições dos EUA são fortes. Teremos de aguentar mais — este presidente ainda tem três anos e meio —, mas eleições intermediárias, juízes, imprensa e estados decidirão as coisas. Um grupo só não toma um país sem representar a maioria.
No Brasil, muitos políticos se sentem reféns do bolsonarismo, como republicanos do Maga. Acham que precisam escolher entre ter votos ou ter uma espinha dorsal. O que lhes diria?
Não sei bem o que dizer a essas pessoas. Ao governo atual eu diria: se vocês não entregam para a maioria e continuam atendendo só a um grupo pequeno, líderes populistas surgirão. Foi o que ocorreu nos EUA — o governo Biden não entregou para a maioria, e um populista raivoso, com promessas falsas, capturou a atenção do público. Isso acontece em qualquer lugar onde o governo falha com a maioria. As pessoas têm razão de estar frustradas, mas precisam decidir se acreditam em promessas vazias ou em quem realmente entrega resultados.