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Edição de Sábado: O generalato da Venezuela

Foto: Divulgação / Gobierno Bolivariano de Venezuela
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As ruas do centro de Caracas seguem cheias nestes dias de incerteza na Venezuela. Funcionários públicos sobem e descem a Plaza Bolívar como se nada estivesse acontecendo ou prestes a acontecer no país. As lojas seguem abertas, os restaurantes oferecem o pabellón criollo como sempre aos trabalhadores que parecem já acostumados a viver num estado permanente de carestia. Em volta dos ministérios, palácios e pontos importantes da cidade, muita polícia, muitos agentes de inteligência, muita gente que sempre usou a força para manter o regime de pé. As piadas e brincadeiras seguem, mas falar de política, uma paixão venezuelana, e sobre o estado das coisas desapareceu das ruas caraquenhas.

Apesar de tudo parecer como sempre, as coisas estão diferentes. Muita gente sussurra rumores de que os americanos já estão no país — e há censura —, outros de que Maduro se prepara para fugir para a Rússia ou de que um golpe interno está prestes a ser deflagrado para que o chavismo se vá de uma vez. “As pessoas estão, como sempre foi nos últimos anos, com a esperança de que algo mude, não importa se por bombas, por algum acordo, por qualquer coisa”, me conta pelo WhatsApp Iolando Moreno, um motorista que já cruzou o país comigo, que já subiu as ladeiras do Petare e de Catia, me ajudando a entender o que é a Venezuela.

Caracas, me conta Moreno, está tranquila, mas naquela tranquilidade em permanente tensão, de que algo está prestes a ocorrer. A dúvida que paira sobre os venezuelanos não é se Maduro vai cair, se vai fugir ou morrer. Tampouco se María Corina Machado, a Nobel da Paz e líder do que sobrou da oposição, vai assumir o poder. Para os venezuelanos, esses não são os personagens chave dessa crise. Para Moreno e quase todos os conterrâneos, a grande dúvida é o que farão os mais de dois mil generais — um recorde mundial — e as tropas que eles comandam quando e se vier alguma mudança no Miraflores. São eles, de fato, que comandam o país, tanto nas operações legais quanto nas ilegais. São eles, enfim, que definirão os rumos incertos do futuro venezuelano.

A possibilidade de Nicolás Maduro finalmente deixar o poder — seja por um acordo negociado, um desgaste interno ou uma pressão internacional — paira há anos sobre a Venezuela como uma promessa distante. A cada ciclo de crise, anuncia-se seu fim iminente, mas o líder chavista persiste, sustentado por uma estrutura que o regime moldou com precisão e brutalidade ao longo de mais de uma década. Ainda que Maduro decidisse aceitar o exílio, abrindo caminho para que a oposição assumisse o governo, nada sugere que a transição resultaria em estabilidade. Pelo contrário: a arquitetura política e militar que o regime construiu é tão intrincada que sua desmontagem, ou mesmo sua simples substituição, poderia arrastar o país para uma espiral de violência e fragmentação.

No centro dessa incerteza está a dúvida de quem governaria de fato. María Corina Machado, indiretamente vitoriosa nas urnas, teria condições de exercer poder real se grande parte do aparato chavista — entranhado no Judiciário, no Legislativo, na administração pública e nas forças de segurança — permanecesse intacto? Mesmo com apoio popular e reconhecimento internacional, ela ainda precisaria negociar com governadores e legisladores formados politicamente dentro do chavismo, muitos dos quais temem não apenas perder privilégios, mas enfrentar retaliações. A própria oposição tampouco parece unificada quanto ao que fazer com as estruturas herdadas: aceitar um compromisso pragmático, com algum tipo de convivência institucional com figuras do regime, ou promover uma purga generalizada que romperia abruptamente com o passado? Nenhuma das opções é simples. Ambas dependem exatamente da reação das Forças Armadas.

A trajetória recente do país deixou os militares numa posição singular — simultaneamente alicerce do governo e parte de um mecanismo econômico obscuro que se tornou vital para a sobrevivência do regime. Maduro aperfeiçoou, ao longo dos anos, uma estratégia que especialistas descrevem como uma fusão funcional entre instituições: concedeu às Forças Armadas e ao Judiciário permissões extraordinárias para operar negócios, controlar empresas estatais e integrar redes de contrabando de gasolina, minerais e drogas. Essa simbiose transformou oficiais de alta patente em atores econômicos, alguns com fortunas construídas em meio ao colapso que atinge o restante da população.

Aqui vale um contexto socioeconômico. A Venezuela é um típico país rentista baseado na produção de petróleo. A partir de 1920, quando os Estados Unidos passaram a investir pesado no país, a Venezuela deixou de produzir tudo, não passou por um processo de industrialização e se acostumou a comprar praticamente tudo de fora: de carros a papel higiênico. Hugo Chávez foi tão bem sucedido nos seus anos no poder por que o barril do petróleo alcançou preços históricos na primeira década deste século. No entanto, ele adotou uma política populista de ampliação drástica nos subsídios, afastou-se da pequena elite produtiva e não criou mecanismos para que a Venezuela escapasse do puro rentismo. Quando Maduro assumiu após a morte de Chávez em 2013, as commodities despencaram e, com o Estado mais inchado do que nunca, rapidamente ele se viu sem reservas para manter o padrão dos anos anteriores. A crise que se abateu sobre a Venezuela nos últimos 10 anos é uma crise recorrente de um país que sempre apostou na fartura de um único ativo — ela já aconteceu muitas vezes e, em geral, foi o ponto central dos muitos golpes de Estado que marcam a história do país.

Pois são os generais que controlam a PDVSA, a estatal venezuelana de petróleo e virtualmente a única fonte de receita do país. São eles que controlam o que entra e o que sai do país, de forma legal ou ilegal. São eles que mantêm feudos estratégicos, têm acesso a um câmbio irreal e permitem que suas famílias possam ter uma vida digna e com algum conforto, uma exceção absoluta entre os venezuelanos. O sistema, ao mesmo tempo que paralisa a economia formal e sufoca o setor privado, garante a prosperidade de um número restrito de leais. Para esses oficiais, a continuidade do regime não é apenas ideológica — é uma necessidade material. Não à toa, eles são conhecidos como a “Boliburguesia” venezuelana.

Os Estados Unidos sabem disso — e não é de hoje. Em 2019, ainda no primeiro governo Trump, houve a crença de que a catástrofe econômica na Venezuela poria fim ao regime. Um integrante da oposição venezuelana, Juan Guaidó, chegou a se declarar presidente do país — e foi reconhecido por governos de direita na região naquele momento, como EUA, Brasil e Colômbia. Os Estados Unidos chegaram a montar uma operação de entrega de alimentos e remédios para entrar sem autorização oficial. Esperava-se que os militares, diante do iminente caos, desertariam em massa. Nada disso aconteceu e Washington aprendeu, desde então, que se Maduro caísse a maior probabilidade era a de que a Venezuela descenderia para uma guerra civil.

A pedido da Casa Branca, oficiais do Pentágono realizaram uma série de projeções sobre o que aconteceria no país se houvesse, de fato, uma troca de regime à força — os chamados jogos de guerra. O resultado foi muito parecido com o que ocorreu quando os EUA atuaram no Iraque e no Afeganistão. Os jogos de guerra mostraram que o caos e a violência provavelmente irromperiam dentro da Venezuela, à medida que unidades militares, facções políticas rivais e até grupos guerrilheiros que operam na selva disputassem o controle do país rico em petróleo. Douglas Farah, um consultor de segurança nacional especializado em América Latina que participou de vários desses exercícios enquanto era pesquisador na National Defense University, revisitou recentemente os jogos militares de 2019 e concluiu que nada mudou nos prognósticos de seis anos atrás.

Por isso, imaginar que um novo governo assumiria automaticamente o controle das Forças Armadas beira o irrealismo para muitos analistas. Em um artigo recente escrito para o International Crisis Group, Phil Gunson, um analista sênior sobre América Latina, diz que muitos generais podem resistir abertamente à mudança de regime. Mesmo que Maduro aceitasse sair, parte das forças de segurança poderia se rebelar, possivelmente iniciando uma guerra de guerrilha contra as novas autoridades.

Outra frente de batalha

A vulnerabilidade venezuelana pós-Maduro tem ainda muitas camadas que operam nas sombras do regime. Maduro — e também Chávez — sempre permitiu que grupos armados de esquerda que lutavam dentro da Colômbia operassem livremente no país. O Exército de Libertação Nacional, da Colômbia, tem alguns milhares de combatentes bem treinados dentro da Venezuela, operando no tráfico de cocaína, na exploração sem controle de ouro e outros minerais e usando o país como base para ataques à Colômbia, como ocorreu no início deste ano.

O ELN já afirmou publicamente seu compromisso em defender o governo Maduro e ameaçou atacar qualquer força estrangeira que intervenha. Sua especialização em explosivos improvisados e drones armados amplia a complexidade de qualquer cenário de transição. As dissidências das Farc, igualmente presentes em áreas remotas, integram uma espécie de pacto tácito com o regime: administram serviços básicos, exploram mineração ilegal e ajudam a contornar sanções internacionais. E, somando-se a esse ambiente já inflamável, há as estimativas de que até seis milhões de armas circulem nas mãos de civis venezuelanos. É difícil imaginar um terreno mais propício para a eclosão de conflitos simultâneos, cada qual reivindicando seu próprio pedaço do poder.

Por isso, os venezuelanos não se importam tanto com quem vai substituir Maduro. O temor mais concreto é saber o que acontecerá depois. Pouca gente acredita que a queda de Maduro — por si só insuficiente para desmontar a estrutura que o sustenta — produzirá, milagrosamente, uma ordem estável. Há o temor oposto: o de um movimento caótico capaz de desordenar ainda mais um Estado já fragilizado pela crise econômica e humanitária. A burocracia está politizada, a infraestrutura se encontra em colapso e a economia funciona à base de improvisos e enclaves privilegiados. Qualquer novo governo precisaria reconstruir instituições, restabelecer serviços públicos, garantir segurança básica e iniciar a miríade de reformas urgentes que o país exige. E tudo isso sem o controle pleno do território, enfrentando a resistência de militares poderosos, a proliferação de grupos armados e o risco permanente de violência política.

O paradoxo é que, embora o regime que Maduro herdou de Chávez seja profundamente impopular — rejeitado pela maioria dos venezuelanos e até questionado por muitos de seus aliados —, ele mantém uma estrutura própria, descentralizada e com feudos de poder espalhados tanto pela economia legal quanto ilegal. O chavismo arquitetou um regime no qual apenas aqueles com poder suficiente para derrubá-lo são também os que mais perderiam com sua queda. A oposição, por sua vez, ainda que legitimada pelas urnas, não dispõe dos instrumentos materiais para romper sozinha a estrutura chavista que controla o país há mais de 25 anos. Civilidade democrática, nesse contexto, exige mais do que vontade; exigiria desmantelar uma engrenagem que se retroalimenta de corrupção, repressão e colapso econômico.

Ao fim e ao cabo, María Corina e Maduro parecem ser os atores principais de uma crise que, à distância, pode parecer simples de resolver com uma mudança de regime. Mas não são. Eles são atores coadjuvantes. O ator central nesta crise são as Forças Armadas que sustentam e se beneficiam do regime. Por isso, a Venezuela está diante da perspectiva de um futuro em que a derrubada do ditador pode ser apenas o início de uma disputa ainda mais perigosa, conduzida por forças que não têm compromisso com a democracia e que há muito aprenderam a prosperar no caos. O caminho para a reconstrução, se existir, será menos uma sucessão política do que a necessidade de reinventar o próprio Estado — um desafio gigantesco para uma nação exausta e sem uma liderança capaz de agregar as diferentes forças que comandam um país em frangalhos.

Moreno me conta que, mesmo depois de tantos anos de agonia, ainda há esperança de que agora, de fato, haja uma mudança. “Não importa qual, importa é que isso acabe.” Com quase toda sua família fora do país — uma constante nos lares venezuelanos —, ele me diz que, se algo não mudar agora, ele, como quase oito milhões de venezuelanos já fizeram, vai embora. Não sabe para onde, não sabe como. Só quer ir. “Não me preocupo tanto com a violência; me preocupo que nada mude.”

Guerra Fria no Porto de Santos

Cerca de seis metros de comprimento, dois e meio de altura, pouco mais de dois de largura. Essas medidas aplicadas ao aço corten, um tipo de aço mais resistente à corrosão e às intempéries do ambiente marinho, dão vida a um contêiner de 20 pés. Um “containerzinho” que, cheio, pode carregar até 24 toneladas. No jargão portuário, ele vale uma unidade: um TEU (Twenty-foot Equivalent Unit), a moeda com que se calcula o pulso das docas.

No maior ancoradouro da América Latina, a moeda registra recordes sucessivos. Entre os berços do Porto de Santos, apenas no ano passado, passaram 5,4 milhões de TEUs. São, então, mais de cinco milhões de contêineres. Imagine só: enfileirados, formariam uma linha de 32 mil quilômetros e mais uns tantos metros, quase 80% da circunferência da Terra. E o ritmo só acelera. Em outubro, Santos movimentou 550 mil TEUs em um único mês. É como se um contêiner se deslocasse, subisse, descesse, girasse, fosse empilhado, a cada cinco segundos, dia e noite, sem pausa.

Toda essa carga se apoia hoje em três terminais, popularmente chamados de portêineres. Do lado de lá do estuário, no Guarujá, está o Tecon Santos Brasil, operado pela companhia Santos Brasil, com capacidade de 2 milhões de TEUs por ano. Do lado de cá, já em Santos, o DP World Santos, da dubaiense DP World, movimenta cerca de 1,3 milhão de TEUs anualmente. E, ainda na margem direita, há o BTP, Brasil Terminal Portuário, controlado pelas duas gigantes mundiais da navegação, MSC e Maersk. Sim: no Porto de Santos, as próprias armadoras operam seu terminal, direcionam seus navios, organizam o pátio, administram o giro da própria carga. Juntas, essas operações somam capacidade para 2,4 milhões de TEUs por ano.

É nesse cenário, em que o porto opera espremido por seus limites físicos, que surge no horizonte o Tecon Santos 10. Um megaterminal planejado para a região do Saboó, na margem direita, com capacidade projetada de 2,3 milhões de TEUs por ano. Sozinho, poderia expandir em até 50% a capacidade total de movimentação de contêineres do maior porto da América Latina. Poderia… porque ainda existe apenas no papel.

O projeto avança lentamente, em estudos, análises e minutas de edital. O leilão, previsto para este mês, foi empurrado para 2026 após indefinições sobre o modelo de concessão. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável por regular e fiscalizar o setor, propôs um leilão em duas fases: na primeira, só poderiam concorrer empresas que não operam hoje no Porto de Santos, numa tentativa de atrair novos entrantes e evitar concentração. Apenas na ausência de interessados, se abriria uma segunda etapa, permitindo a concorrência entre operadoras já instaladas, como Maersk e MSC. Na prática, um filtro que pode tirar da largada justamente os maiores players do mercado.

O Ministério de Portos e Aeroportos apoia a lógica da Antaq e do Tribunal de Contas da União (TCU). Outro ente convocado à disputa, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), garante que há remédios para impedir a concentração de poder das empresas que já atuam em Santos, como o desinvestimento. Ou seja, se uma empresa da “casa” ganhasse o leilão, abriria mão de seus negócios atuais em prol do Tecon 10. O TCU, órgão que baterá o martelo a respeito do formato do leilão, está dividido. Enquanto o relator do caso, ministro Antônio Anastasia, defende a ampla concorrência e avalia que não há risco de concentração do mercado devido ao instrumento do desinvestimento, o ministro Bruno Dantas, revisor do processo no Tribunal, é favorável à exclusão de armadores e empresas que já têm terminais em Santos em uma primeira fase. Por isso, o ministro Augusto Nardes pediu mais prazo para análise e a decisão está marcada para o próximo dia 8.

Por trás do impasse aparentemente técnico, o empreendimento, a menina dos olhos do setor portuário, com potencial para reorganizar a logística do país acabou no epicentro de uma disputa onde interesses institucionais, pressões empresariais e resistências de mercado se entrelaçam. Uma espécie de guerra fria travada sobre um pedaço estratégico do estuário de Santos, território historicamente atravessado por redes de influência política que vão do velho MDB paulista e do círculo de Michel Temer ao novo protagonismo do Republicanos no comando de Portos e Aeroportos.

O leilão que não cabe no edital

“Nós estamos sendo postulados a um possível concorrente, e a gente não se coloca nessa posição. A gente se coloca numa posição de olhar oportunidades que o Brasil nos oferece.” A frase do CEO da JBS Terminais, Aristides Russi Jr., em setembro, durante uma viagem oficial à França, soou como uma resposta calibrada para reduzir especulações. Ele insistiu: “Quando a gente entender que seja viável a nossa participação, aí, obviamente, vamos nos comunicar. No momento, não temos nenhuma posição sobre o Tecon 10.” Nos bastidores, porém, a leitura é outra. É a de que a empresa já se movimenta estrategicamente para concorrer. Operadores e armadores do mercado portuário apontam a sequência de notícias que já foram publicadas sobre a proximidade entre os irmãos Joesley e Wesley Batista e o governo, sobretudo com o ministro de Portos e Aeroportos Silvio Costa Filho e com o ministro do TCU, Bruno Dantas, que já visitou a ilha de Joesley e admitiu ter usado um jatinho do grupo J&F. Procurados, J&F e o ministro Silvio Costa Filho não se manifestaram. Já o ministro Bruno Dantas, questionado à época sobre sua relação com Joesley Batista, afirmou em nota que o “superficial e esporádico convívio social” que manteve com o empresário não “infringiu normas legais”.

A cronologia reforça o desconforto nos bastidores. Em fevereiro de 2024, o governo retoma o Tecon 10, e a JBS, no mesmo mês, estreia no setor ao iniciar as operações no terminal de Itajaí, em Santa Catarina. Em março, enquanto a Antaq debatia o novo terminal em audiência pública, Joesley e Wesley viajavam à Ásia na comitiva presidencial junto a Silvio Costa Filho. Em abril, mesmo depois de um estudo técnico descartar a necessidade de restrições, a Antaq manteve o modelo em duas fases. Dias depois, os irmãos subiram ao palco, ao lado de Lula e Silvio Costa, durante o anúncio da criação de uma companhia de docas federal para o porto de Itajaí.

Em julho, a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda reforçou que o leilão deveria ocorrer em etapa única. No parecer, o órgão concluiu que a realização faseada do certame, como propôs a Antaq, “embora bem-intencionada” é desproporcional. Em agosto, veio a publico que os irmãos Batista sondaram a suíça MSC para formar sociedade mirando o Tecon 10, mas as tratativas não avançaram. E, em setembro, o tabuleiro ganhou mais um movimento sensível: o TCU pediu um novo parecer concorrencial, mas o endereçou à Superintendência-Geral do Cade, chefiada por Alexandre Barreto, ex-chefe de gabinete de Bruno Dantas.

Esse encadeamento de contatos, agendas e decisões, ainda que amparado em atos formais, fortalece entre players do setor a percepção de que a JBS ganhou tração política em torno do Tecon 10. Reduzir a disputa, no entanto, a uma suposta manobra da companhia seria subestimar o apetite e o alcance político de outros atores que também enxergam no megaterminal a joia mais valiosa do setor portuário em décadas. A MSC e a Maersk têm sido as empresas com maior apetite para entrar no leilão, mas estão impedidas pelas restrições da Antaq. Em abril, as duas principais autoridades do Cade, o então presidente Alexandre Cordeiro, e Barreto, que ocupava a superintendência da autarquia, aceitaram convites para a festa de inauguração de um terminal de cruzeiro marítimo da gigante MSC. Em junho, o grupo Maersk entrou com um pedido de mandado de segurança contra a agência para que reconsiderassem o formato do certame.

Nesta semana, os ventos europeus sopraram a pressão pelo leilão aberto, em uma só etapa. As embaixadas da Suíça (MSC), Dinamarca (Maersk) e Holanda, países sede das atuais operadoras do porto, enviaram uma carta ao presidente do TCU, Vital do Rêgo, alertando para o risco de prejuízo à competição. No documento, encaminhado também ao Itamaraty, afirmaram que preservar a concorrência é crucial para sustentar a imagem do Brasil diante de investidores internacionais. O conteúdo é diplomático, mas carrega um recado mais amplo: o impasse do Tecon 10 já ultrapassa o porto de Santos e começa a atravessar a agenda externa do país. E o momento não permite ruídos.

Em meio às negociações sensíveis do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, qualquer sinal de fechamento ou favorecimento pode ser lido como retrocesso regulatório. O aviso ganhou ainda mais peso pelo detalhe geopolítico: desde julho, a Dinamarca ocupa a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Uma das signatárias da carta está hoje em um dos postos centrais na condução política do bloco.

Enquanto isso, do outro lado do hemisfério, algo também se movia. A Ásia não ficou alheia ao jogo. A chinesa Cosco Shipping, quarta maior operadora de contêineres do planeta, resolveu bater à porta do governo brasileiro. A conversa, em uma videoconferência discreta, tinha dois pontos: declarar interesse no leilão e confidenciar uma preocupação. Pelas regras atuais, a empresa poderia ser descartada antes mesmo de apresentar proposta. Tudo por causa de uma participação inferior a 5% em um fundo que, por sua vez, detém uma fatia minoritária em um terminal de Santos. Um detalhe societário, pequeno no papel, enorme no edital, que faz a chinesa advogar pelo modelo de leilão em uma etapa só. Nos gabinetes de Brasília, a chegada da Cosco foi recebida com entusiasmo. Até então, além da própria JBS Terminais, quase ninguém surgia como candidato concreto, e capaz de dar um lance robusto, ao megaterminal. A outra postulante, a filipina ICTSI, que não opera em Santos, está com a JBS e se animou com o modelo em duas etapas, chegando a apresentar ao TCU um parecer defendendo a modelagem.

E assim o Tecon 10, antes mesmo de existir em concreto, já opera como um terminal em pleno fluxo: recebe pressões, redistribui forças e expõe, contêiner por contêiner, a dificuldade do Brasil de separar técnica e política no mesmo cais.

Aposta dobrada

João Kombi, guitarrista e vocalista do Test, a banda de grindcore que faz um dos sons mais extremos de hoje no Brasil, sobe ao palco do Garage Grindhouse acompanhado apenas de sua guitarra e uma série de pedais. Senta no chão e inicia uma improvisação de cerca de 20 minutos, em que a guitarra elétrica é usada de maneira magistral para aquilo que foi criada: emanar ondas de ruído. João não estava listado no line-up da noite que abriria a 15ª edição do Festival Novas Frequências, mas seu show surpresa diz muito sobre o ethos desse evento singular, assim como o palco escolhido para abrir os próximos onze dias de shows no Rio e em São Paulo.

Garage Grindhouse é um templo da música alternativa carioca. Aberta em 1998 como Garage Art Cult, a casa de shows próxima à Praça da Bandeira recebeu boa parte das bandas independentes das últimas décadas. Abrigou inclusive algumas que depois chegaram ao mainstream, como Planet Hemp e Los Hermanos. Reaberta depois da pandemia, há pouco mais de dois anos, mantém o espírito underground, com suas paredes pretas grafitadas, chão de madeira e palco baixo. E veio abaixo com o metal do trio japonês Birushanah e, na sequência, com a demolidora dupla americana Wolf Eyes, com sua performance de noise-canção.

O casarão da rua Ceará, um dos principais palcos da música extrema no Rio, é marcado por uma longa história de resistência cultural. O que faz eco à aposta deste ano do Novas Frequências que, mesmo sem patrocínio, não só realiza sua edição carioca com artistas nacionais e internacionais como dobra a aposta e decide expandir a programação para São Paulo, com shows diários de segunda a sábado da semana que vem.

Para Chico Dub, curador do festival e um de seus criadores em 2011, essa aposta se justifica por duas razões. A primeira é realizar uma edição à altura dos 15 anos do Novas Frequências e a segunda é entender a ida para São Paulo como crucial para a manutenção do festival, podendo levar ao mercado paulistano a experiência completa do que é viver esses dias de música experimental, algo mais tangível do que uma apresentação de Power Point. “Esse é o segundo ano em quatro que a gente está fazendo sem patrocínio. E, muito sinceramente, acho que isso pode acontecer mais vezes. Então, essa ida para São Paulo é estratégica, é uma coisa tipo estamos caindo, mas vamos cair atirando”, diz, justificando que essa é uma maneira de os paulistanos que já ouviram falar do Novas Frequências “entendam como é o festival mesmo e que ele que tem a cara de São Paulo”.

Não que a cidade não tenha tido um aperitivo. Em 2012, com o Novas Frequências ainda engatinhando, foi feita uma noite no finado Beco com shows do Pole, Actress e Hype Williams. O que Chico Dub classifica mais como um pocket show do que o festival propriamente dito. “Neste ano, além da vontade de querer comemorar, queríamos fazer uma comemoração de peso, relevante, levando para São Paulo bons artistas, com shows em boas instituições.”

E a maneira de fazer isso foi costurar parcerias com o Cultura Artística, com o Sesc Avenida Paulista e com o Theatro Municipal, que cedeu a Reserva Técnica Chico Giacchieri, localizada no Pari e que só neste ano passou a abrigar alguns projetos culturais. Ainda assim, a dinâmica do festival não é exatamente igual à do Rio. Isso por algumas razões.

A primeira é que, no Rio, o Novas Frequências estabeleceu uma relação com a geografia urbana, fazendo um casamento estético entre as atrações e diferentes locais da cidade. Como o festival atua na intersecção de música e arte sonora, às vezes a própria cidade passa a ser um personagem dessa história. Posso trazer como exemplo uma obra proposta da edição de 2016. Daniel Limaverde apresentou sua Sweet Spot. Basicamente, você recebia coordenadas em seu celular e, ao chegar ao local proposto, poderia ouvir um som em diálogo com aquele ambiente. Era uma espécie de caça ao tesouro no meio da cidade. Lembro de desbloquear músicas no Parque Laje, pelo Cais do Valongo, nas igrejas de Nossa Senhora da Paz e Nossa Senhora do Carmo, num píer da Lagoa Rodrigo de Freitas. Para meu olhar estrangeiro, foi incrível. O único senão foi a certeza de ter contraído dengue em algum desses lugares. Minha aposta até hoje é o Parque Laje.

Neste ano, a programação carioca mantém um pouco dessa identidade. Na última quinta, as apresentações de uma live do G Paim e um back to back entre as DJs Anti Ribeiro e Aleakim aconteceram na varanda do Solar Granjean de Montigny, dentro do campus da PUC. Os shows mais contemplativos das canadenses Sarah Davachi e Kara-Lis Coverdale foram no Solar de Botafogo e a noite de eletrônica dançante, com o som árabe psicodélico do Praed, o techno de Cashu e o afrofuturismo de Faizal Mostrixx, rolou no Trauma.

Hoje a programação acontece de graça no Parque Laje e traz propostas bem diferentes que exploram diversos aspectos da materialidade do som, passando pelas paisagens sonoras da mexicana Concepcíon Huerta, da dupla Rosa Noviello & Lara Dâmaso, os experimentos espaciais de Nico Espinoza, o drone nordestino de Chico Correia, as improvisações livres de Luciana Rizzo e da dupla Violeta García e Hora Lunga. E o final pesado acontece no Circo Voador, com três brasileiros de peso, em diferentes sentidos: Metá Metá, Test & Deafkids e Papangu. E, durante toda perna carioca do festival, é possível visitar de graça uma instalação de Craca na Casa Firjan.

Essa mescla entre eventos pagos e gratuitos não acontece em São Paulo. Por lá, durante a semana serão shows mais convencionais. Na segunda, o Cultura Artítica recebe Kara-lis Coverdale e Sarah Davachi. Na terça e na quarta, o festival migra para o Sesc Avenida Paulista, com o Birushanah na terça e o Praed na quarta. Aí volta para o Cultura Artística na quinta com o Algol, um trio eletroacústico formado por Christian Lillinger, Elias Stemeseder e Camilo Ángeles e, na sexta, com o jazz livre de Paola Ribeiro.

O dia que mais dá a sensação do clima do Rio é o encerramento na Reserva Técnica Chico Giacchieri. “Serão várias performances no espaço, e o público vai poder experimentar um pouco da variedade do festival”, diz Chico Dub, destacando a improvisação de brasileiras que moram fora como a harpista Marina Mello e a flautista Marina Cyrino que “vem com uma performance nova, super interessante, com máscara, figurino e vários elementos em cena”. Neste dia, além de artistas que só tocam na edição paulistana, como Edgar com os Fita, se apresentam Concepcíon Huerta e Luciana Rizzo. Mas Chico não descarta surpresas durante a semana, e é bem capaz que o final se dê com num pique mais eletrônico. “Qualquer festival de música experimental que se preze não pode ignorar a música eletrônica, né? É dos gêneros guarda-chuva, e vanguardistas que se tem dentro desse grande balaio de gatos que se convencionou chamar de música experimental”, diz.

Mesmo com o esforço de expandir o Novas Frequências para além do Rio, e da esperança de encontrar novos caminhos para realizar um festival internacional de vanguarda em São Paulo, Chico tem muita dúvida da sustentabilidade desse tipo de projeto. “O modelo festival como o Novas Frequências está com os dias contados. A gente ainda é um nicho pequeno e está brigando pelo mesmo dinheiro que todo mundo. E o poder público se envolve pouco. Existe uma preocupação muito grande, quando o governo está envolvido, com descentralização, democratização e diversidade. Então, um festival como esse é visto como de elite. Ele não vai pegar a mesma verba que um festival periférico, de cultura preta, ou que tenha temas que dialoguem com o espírito do tempo.”

Se perspectiva financeira não é das mais animadoras, o melhor é se voltar para a arte. Talvez, neste ano nada dê mais um sopro de esperança do que a instalação de Craca no Rio, vista aqui pelos olhos do Chico: “Está tudo muito muito difícil, complexo, distópico e triste. Escuro e cinza. Então, o tema Futuros Possíveis coloca um pouco de luz de volta nas utopias. Será que a gente consegue imaginar futuros possíveis que sejam mais alegres, com o bem viver e o bem-estar? O Craca trouxe a ideia de a gente pensar o futuro através da escuta. Então, é uma uma instalação com diversos altos falantes e cornetas espalhados pelo jardim da Casa Firjan, onde ele selecionou trechos de falas de diversos teóricos e pensadores, de líderes indígenas e filósofos, escritores e ele mesmo se inseriu nessa conversa, conversando com a filha e a esposa dele para pensar esses futuros.”

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